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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Como um veleiro que se perde no horizonte... assim é a morte


Quando observamos, da praia, um veleiro a afastar-se da costa, navegando mar adentro, impelido pela brisa matinal, estamos diante de um espectáculo de beleza rara.

O barco, impulsionado pela força dos ventos, vai ganhando o mar azul e parece-nos cada vez menor.
Não demora muito e só podemos contemplar um pequeno ponto branco na linha remota e indecisa, onde o mar e o céu se encontram.

Quem observa o veleiro desaparecer na linha do horizonte, certamente exclamará: "já se foi". Terá desaparecido? Evaporado? Não, certamente. Apenas o perdemos de vista. O barco continua do mesmo tamanho e com a mesma capacidade que tinha quando estava próximo de nós. Continua tão capaz quanto antes de levar ao porto de destino as cargas recebidas. O veleiro não evaporou, apenas não o podemos mais ver.

Mas ele continua o mesmo. E talvez, no exacto instante em que alguém diz: "já se foi", haverá outras vozes, mais além, a afirmar: "lá vem o veleiro" !!!

Assim é a morte.

Henry Sobel

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A Boa Morte


Nada me soa mais a assunto de ano novo do que a morte, mas não uma morte qualquer nem a morte bruta e banal dos noticiários, muito menos a morte sem nome ou rosto que tolhe os desafortunados. Com as doze badaladas penso quase sempre na boa morte. E sorrio.

Por Nuno Gaspar Oliveira, 
Consultant, Strategic Management & Marketing, Ecology & Ecosystem Services, 

Para além da dor, da perda, da angústia e do sofrimento, as dimensões mundanas da morte, existe um lado que me fascina que é o da morte como corretora de actos e atitudes, de mediadora das escolhas que fazemos em vida e da grande triagem que esta nos ensina a fazer. Afinal, quais são aquelas coisas de que nos arrependemos ou orgulhamos no memento mori? Mais sobre este assunto à frente…

Enquanto não-crente-em-qualquer-dimensão-religiosa-espiritual-da-vida-pós-mortem tenho uma perspectiva algo desapegada da morte, o que é diferente de ser indiferente à mesma e a de quem dela se abeire demasiado. Lembro-me muitas vezes das palavras de Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não já não existimos.” Talvez desta forma consigamos estar mais ‘vivos’ enquanto vivemos, pois não havendo prémio, consolação ou martírio a aguardar o nosso último suspiro, ficamos apenas com a enorme, terrível e fascinante tarefa de aproveitar bem cada dia de vida, o tal carpe diem que sussurram os poetas mortos. Mas talvez seja isso o que mais nos assusta…

Se esquecermos a morte e o que ela representa arriscamo-nos a menorizar a vida
Muslah-Al-Din Saadi, um poeta persa do séc. XII terá escrito que “quando morreres, só levarás aquilo que tiveres dado”, algo que já teria sido defendido pelos estóicos romanos, dos quais destaco Séneca e Marco Aurélio, que talvez sejam os mais conhecidos filósofos desta corrente de pensamento nascida no séc. IV a.C. Marco Aurélio disse mesmo que não é a morte que devemos temer, mas sim a possibilidade de nunca começarmos realmente a viver, construindo através do pensamento uma vida plena, de qualidade e com força para compreender a verdadeira natureza da adversidade.

Séneca também deixou bem clara a sua perspectiva acerca da fatalidade da morte e do morrer, argumentando que a mesma seria um erro nosso: vermos a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, quando na verdade esta ia ficando para trás, onde cada hora do nosso passado seria já pertença da morte.

A Oriente também ecoavam as palavras de Confúcio, “para quê preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro”. Para quê então, se é em vida que tudo o que podemos ou devemos fazer deve ser feito? Eu tenho a minha própria interpretação: porque se esquecermos a morte e o que ela representa arriscamo-nos a menorizar a vida.

Honestamente, estou farto dos clichés do ‘arrependido’, do milionário que só se lembra de distribuir a riqueza quando o nó aperta e a consciência pesa; do austero que suspira pelo amor que não deu aos outros que tanto lhe ofereceram até ao momento em que deles se despede; do hedonista que percebe que não é do Porshe, do Bordeaux raro ou das compras na Fifth Avenue que guarda as melhores memórias; do reprimido que não ousou libertar-se dos seus próprios atilhos quando nada mais o pode prender…

Estou farto de todos nós que tudo podendo fazer em vida desanimamos, hesitamos, distorcemos argumentos, não nos levantamos depois de uma derrota ou aprendemos a partilhar as vitórias, alimentamos fantasias de ego e nos fixamos na glorificação do instinto de sobrevivência, materializado em benesses financeiras ou posições de poder, et omnia vanitas. Aqui entra a minha visão das coisas. Se todos nós estivéssemos mais vezes conscientes da morte e da possibilidade de esta nos despir e tornar absolutamente nus perante a eternidade, como alegava Pessoa, poderíamos ultrapassar o fado da contrição e fazer hoje o que tanto nos assusta não ter feito quando ela chegar.

Gostava de poder um dia repetir as palavras de Mandela e fazer delas um bocadinho minhas: “A morte é algo inevitável. Quando um homem já fez aquilo que considera ser o seu dever (…) pode descansar em paz. Acredito que fiz esse esforço e que é por isso que descansarei para a eternidade.” Mas porventura é também uma vã vaidade minha suspirar por tamanha proeza.

Talvez possa então encontrar algum conforto nas palavras de Agostinho da Silva: “Não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte (…) que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida”. E, garanto-vos, quando soavam os festejos dos primeiros segundos do novo ano e olhava para a minha mulher, os meus filhos, os meus amigos, pensei “que maravilhoso seria ter um dia, tão distante quanto possa ser, uma boa morte, reflexo de uma vida cheia. Ter sido útil e ter passado algo de bom a quem fica”. Como aspirava Pitágoras, sair da vida como de um banquete e partir em busca do ‘grande talvez’ de Rabelais…

Morre lentamente


Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
repetindo todos os dias o mesmo trajecto,
quem não muda as marcas no supermercado,
não arrisca vestir uma cor nova,
não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o “preto no branco”
e os pingos nos “ii” a um turbilhão de emoções indomáveis,
justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,
quem não se permite, uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, 
desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,
não perguntando sobre um assunto que desconhece
e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior do que o simples acto de respirar.

Estejamos vivos, então!

Martha Medeiros,
citado em Manuel Forjaz, «Nunca desistas da Vida»

sexta-feira, 12 de junho de 2015

E o resto?


Na maldade do luto apeteceu-me pedir que completassem a frase. "Os meus sentimentos... quê? Então e o resto?"

Há vinte anos, quando morreu o meu pai, dizia-se: "Os meus pêsames." É feio. É pesado. Mas, quando se está de luto, as coisas pesadas (e as leves) fazem companhia.

Agora dizem-me: "Os meus sentimentos." É mais bonito. Mas continua a faltar um verbo qualquer. Quem diz "os meus sentimentos" diz "as minhas emoções", "as minhas lágrimas" ou "as minhas ideias".

Na maldade do luto apeteceu-me pedir que completassem a frase. "Os meus sentimentos... quê? Então e o resto?" Será, por exemplo, "Os meus sentimentos por si são de compaixão e solidariedade"? Ou "Os meus sentimentos estão a dar cabo de mim"? Ou "Os meus sentimentos só eu é que sei quais são"?

"Os meus sentimentos" são o sujeito de uma oração a que falta, no mínimo, um predicado e, na mais liberal das expectativas, um complemento directo.

O que se responde a "os meus sentimentos"? "Os meus agradecimentos?" Mas quais são os sentimentos de que estamos a falar?

A língua portuguesa tem muitas saudades dos verbos. "Sinto muito" ou só "lamento" dizem mais do que um artigo definido, um pronome possessivo e um substantivo. Até um só substantivo ("Que pena!") é melhor.

Ainda por cima os sentimentos atrás da fórmula "os meus sentimentos" são genuínos e comoventes. Se calhar é: "Os meus sentimentos... têm reticências ricas."

Será que, na verdade, é "Os meus sentimentos...[são de tal ordem difíceis de exprimir que o melhor é eu ficar por aqui...]"?
Hoje acredito que sim. Porque até os meus sentimentos...

Miguel Esteves Cardoso | Público, 04/06/2015

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Acreditas na vida depois do parto?

No ventre de uma mulher grávida, encontravam-se dois bebés.
Um deles pergunta ao outro:
- Acreditas na vida depois do parto?
- Claro que sim. Deve haver algo depois do parto. Talvez estejamos aqui, porque precisamos de nos preparar, para o que seremos mais tarde.
- Que tolice. Não há vida depois do parto! Como seria essa vida?
- Não sei. Seguramente haverá mais luz que aqui. Talvez caminhemos, com os nossos próprios pés, e nos alimentemos, pela boca.
- Isso é absurdo. Caminhar é impossível. E comer pela boca? Isso é ridículo. Só pelo cordão umbilical. Eu digo-te uma coisa: a vida depois do parto está fora de questão. O cordão umbilical é demasiado curto.
- Pois eu creio que deve haver algo mais. E talvez seja apenas um pouco diferente do que estamos acostumados a ter aqui.
- Mas nunca voltou ninguém, depois do parto, para nos dizer nada! Não. O parto é o fim da vida. E, no final de contas, a vida não é mais que uma angustiosa existência na obscuridade que não leva a nada.
- Bem, eu não sei exatamente como será depois do parto, mas certamente que veremos a mamã e ela cuidará de nós.
- Mamã?! Tu acreditas na mamã? Onde pensas tu que ela está?
- Aonde? Em tudo, à nossa volta. Nela e através dela é que vivemos. Sem ela, este mundo não existiria. 
- Pois eu não creio. Nunca vi a mamã, portanto é lógico que não exista. 
- Bem, às vezes, quando estamos em silêncio, tu podes ouvi-la a cantar ou sentir como acaricia o nosso mundo. Sabes? Eu penso que há uma vida real que nos espera e que agora apenas nos estamos a preparar para ela…
José António Goñi